O cenário é uma beleza – Zuenir Ventura

Minha alma estava tão lavada quanto o ar do Rio nesta época do ano: sem névoa, transparente, deixando aparecer com nitidez o recorte das montanhas. Na véspera eu fora ver “Um porto para Elizabeth Bishop” e agora, caminhando pelo calçadão, continuava ouvindo a grande poeta americana falando da cidade. O horror que sentira ao chegar em 1951: “Tudo tão sujo, tão desorganizado! Como é que eles conseguem viver aqui?”

O sol da manhã agora não é aquele sol de verão que reverbera na areia e quase cega, queima e tosta. Não: o que se vê nestas manhãs de inverno carioca (inverno?) não é sol, é luz. Ele não queima, aquece, não bate na gente, toca. Como é que a Bishop não viu isso?! “É tudo desleixado, corrompido. O Rio me deprime”. Será que ela tem razão? “O Rio é um cenário para uma cidade maravilhosa, mas não é uma cidade maravilhosa”.

A frase me irritou ao ouvi-la, talvez porque, em última instância, essa é para nós uma questão aflitiva e recorrente. Somos mesmo a Cidade Maravilhosa ou uma “inútil paisagem”? Quando deixaremos de ser o cenário mais que perfeito de uma realidade imperfeita?

Continuei vendo a peça. Que combinação extraordinária entre um excelente texto, uma admirável interpretação e uma impecável direção – sem falar no cenário, na trilha sonora, na iluminação. Que rara harmonia entre emoção e estética. Fui para ver um monólogo e “vi” duas mulheres no palco: Elizabeth e Lota. Não me perguntem como isso acontece.

Como, sem recursos de recriação visual, sem foto, sem filme, apenas com a voz e o corpo, a Regina consegue esse feito? Uma coisa é certa: depois de Regina Braga, Elizabeth Bishop não será mais a mesma – não terá outra voz, outro rosto, outros belos olhos. Com o sol alisando minha careca, vou me perguntando quem afinal vi: Regina Braga, Regina Bishop ou Elizabeth Braga?

Continuo andando. Meus aeróbicos companheiros de todo dia vão passando. A jovem mãe que sumiu há meses e agora volta empurrando um carrinho de bebê. Eliana Caruso, a que, como o Rio, tem uma única estação: está sempre da mesma cor, mulata. A poeta Ana Bruno dá um adeusinho brejeiro. Uma linda garota de Ipanema cruza e lança um olhar com um sorriso meio maroto, mas que, sem fantasia, quer dizer apenas “te conheço de algum lugar, tio”.

Do Posto Onze volto ao Posto Nove e só então, quase chegando, presto mais atenção na nova obra da prefeitura no calçadão: vários bicicletários, uns cinco ou seis só no meu percurso. São 11h5m e o que eu tenho diante de mim dispõe de 42 vagas, das quais apenas duas estão ocupadas. A calçada ali tem mais ou menos quatro metros de largura, medidos com meus passos. A geringonça, quando cheia de bicicletas, ocupa a metade do espaço. São dois metros roubados dos pedestres.

Um atleta passa correndo pela ciclovia e, vendo aquele maluco medindo calçada, grita: “Alguém tá embolsando grana com isso!”. A obra é tão desnecessária, tão absurda, que tendo a considerar a denúncia leviana que acabo de ouvir. Agora, os ciclistas, que já não respeitam o sinal de trânsito, que nos atropelam ao atravessar na faixa, vão ter mais um pretexto para a nova invasão: “Não enche o meu saco, estou indo estacionar”, dirão educadamente aos chatos dos sem-espaço que reclamarem.

Fico pensando o que Elizabeth acharia disso. Com seu olhar estrangeiro, ela fez observações hilárias sobre a nossa terra. Descobriu, por exemplo, que a gente adora se queixar do fígado: “É o único órgão em funcionamento no Brasil”. “A elite brasileira deve ter muito pouca gente, porque todo mundo se conhece. Todos os governantes são parentes de todos os intelectuais”. Sobre desfile de escolas de samba: “É a confusão mais organizada que eu já vi”.

Tendo descido aqui para uma escala, Elizabeth acabou permanecendo 15 anos seguidos, até 1966 (depois, mais sete anos indo e vindo). Por Lota, ela se apaixonou logo. Pelo Brasil, levou algum tempo, foi seduzida aos poucos, resistindo criticamente. São duas histórias de amor enternecedoras. No final ela confessa que este país e esta cidade que ela tanto odiou no começo ajudaram-na a sobreviver. Admite, porém, que o Brasil perdeu um pouco da ternura: “Ficou cada vez mais duro, cada vez mais truculento”.

E cada vez mais absurdo, ela diria se tivesse visto os bicicletários, essa pequena mostra do que se tem feito com o Rio: desconstrói-se o que não deve e constrói-se o que não precisa. A triste realidade é que, de Elizabeth Bishop para cá, a cidade caminha para ser o que ela achou que era: um cenário lindo, duro e truculento.